terça-feira, 31 de julho de 2007

SEMÂNTICA PERSECUTÓRIA (cont.7)


O Arguido pede mesura para tal, mas como Oficial de Transmissões não podia iniciar a petição sem a mítica Carta a Garcia, uma mensagem curta, clara e concisa, sem esconder que as circunstâncias presentes resvalam para uma interpretação do foro litigante que a subjúdice despreza por tal não se constituir em nenhum propósito substantivo.

A propósito adianta ainda que debalde se encontrará nela divergência que constitua deslealdade.

O único propósito está exarado no exórdio e advém do gerúndio de actos atrás apontados, julgados nocivos, alguns mesmo diria insurgentes, que reclama superintendente e imparcial revisão a fim de ver expurgada a inconveniência contida.

V.ª Ex.ª, permitir-lhe-á o afoitamento, quando o Signatário se atreve a dizer que partilhamos a era da informação onde a mensagem se propaga à velocidade da luz, reduzindo o globo à dimensão dum “regimento”, a cuja “parada” acedemos, em tempo real, da nossa própria casa.

A competência tecnológica debelou as fronteiras do impossível. Do sofá, numa questão de segundos, voamos, até ao país do sol nascente e de novo, em segundos também, escolhemos sobrevoar Nova Iorque ou visitar a belíssima e mítica cidade de Lhasa.

Isto porque a moral tecnológica imolou as duas clássicas estruturas que diferiam a realidade, o espaço e tempo. Hoje, tudo se mede ao segundo, os acontecimentos e a divulgação deles ocorrem quase simultaneamente, quase em tempo real, e, uns segundos de atraso tornam a notícia ultrapassada ou quiçá obsoleta.

Essas duas velhas, e outrora indomáveis, estruturas tornaram-se frágeis e vulneráveis o que, e como consequência, reclama uma inevitável modificação das variáveis do poder em geral, e do poder de decisão em particular, cuja hermenêutica não se satisfaz com o clássico formulário.

Tudo porque hoje o subalterno dispõe da capacidade de superintendência dos actos que lhe interessam ou lhes dizem respeito. A libertação e a democratização do poder cognitivo permite-lhe monitorizar as acções ou omissões do subordinante e, a cada momento, autoriza-o a iluminar ou reclamar das cedilhas (de incúria) anotadas, como a hesitação, o erro, a lacuna, a ilegalidade, o vício ou a irresponsabilidade.

A consciência da despersonalização do saber ofereceu-lhe a credenciação e a acessibilidade, outrora indiagnosticadas, e que, ora lhe conferem jusintendência sobre a virtude ou o anátema, o erro ou o acerto, o bem ou o mal.

Mas a acareação da moral racional parece ter confundido a velha, persistente e autoritária mentalidade, ungida de infalibilidade ora posta causa, e, que, vendo fugir o ónus dessa presunção, reage, sem esconder o ressentimento, utilizando a única arma que, conjunturalmente, conseguiu manter sob os auspícios da regulação caduca: a avaliação.

(…)

O Regimento é hoje um sistema aberto, todos se conhecem uns aos outros, e, consequentemente todos se avaliam mutuamente.

Ninguém se surpreende com aquilo que cada um é capaz de fazer ou dizer.

Ante o funeral da velha estatuição, nasce uma nova realidade orgânica que alguns, em razão de patente, persistem em postergar. A inquestionável verdade de ontem é hoje questionada, quer no plano moral, quer no formal, em razão do “pluricontrolo”, e, embora a competência para, seja ainda - em rigor, por enquanto - exclusivo da hierarquia, a verdade é que isso não impede a prole de, igualmente, aferir, avaliar e distinguir o bom do mau desempenho, o mérito do demérito, indiferentemente do galão, da divisa ou da patente rasa.

Os princípios reguladores são acessíveis a todos e a cada um.

Levantando a cabeça poderemos contemplar, ao nosso redor, distinção que a realidade não ostenta, ou vice-versa.

Em certo sentido, no mínimo no plano subjectivo, talvez caiba na presente diligência produzir uma pequena reflexão sobre as razões da razão do disfuncionamento entre o idealizável e o realizável que, segundo sua humilde e íntima convicção, teve a sua génese no dia em que a aurora do voluntariado obscureceu a conscrição.

A moral patriótica impunha coercitividade ao dever militar, o perfil de cidadania assentava numa cultura de conscrição, inquestionável, que constituía a infra-estrutura do modelo de organização militar.

A emergente revolução dos valores amortizou a cultura da tolerância, a conscrição cede perante o voluntariado deixando a (velha) organização órfã do recenseamento. Todas as orfandades, esta não podia ser diferente, provocam desadaptação, depressão e angustia psicológica e física, cujos sintomas foram durante anos a fio, involuntariamente escondidos, por debaixo da semântica parangonas como a reorganização, a reestruturação e a modernização, panfletariamente anunciadas e apoteoticamente acolhidas.

Mas a inadaptação era estrutural e tarde ou mais cedo haveria de vir à superfície.

O diagnóstico depressivo não tardou, gerando uma espécie de psicanálise colectiva que, a estatística de demissões (voluntárias ou impostas!) oferecem culminante testemunho. Ao mesmo tempo, a inércia, escancarou as portas do associativismo e a consequente revisão dos conceitos de fidelidade e de lealdade que passaram a perder precedência perante a moralidade e a legalidade.

A estatística do indeferimento constitui outro idóneo indicador.

Da velha estrutura, e correndo o risco de cometer algum exagero, o Signatário julga sobrar o Hino, a Bandeira, o Juramento e os arrepios da pele.

O RDM (Regulamento Disciplinar) já sofreu inconstitucionalidades, o CJM (Código Justiça Militar) foi sepultado, o Tribunal Militar foi desautonomizado, o crime essencialmente militar metamorfoseou-se numa sazonalidade contingencial, o RAMME (Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares do Exército) que nasceu com o apoteótico propósito de avaliar competências, desempenhos e méritos, começa a ser posto em causa, a organização do tipo territorial dá lugar a fórmulas removíveis, as Regiões militares agonizam, as Brigadas nascidas hoje, morrem amanhã, os comandos ora são funcionais, ora são hierárquicos, ora (…), e é neste ambiente de turbulência que nasce a “Carta Deontológica do Serviço Público”, anunciada como matriz duma nova Moral tida com o fito de estancar o desencanto, e que, quase instantaneamente, se vê transformada em instrumento de lide visando postergar velhas demandas.

A ideia duma Administração Pública transparente tornou-se inadiável por mais um segundo que fosse, a consciência colectiva passou a exigir e a responsabilizar os agentes pelo serviço (produto) prestado à cidadania. A administração perdeu a coercitividade para se tornar num instrumento de cidadania, numa servidão pública, num conceito aberto onde os valores éticos não mais podem ser escondidos nem ofuscados nos sinuosos corredores da velha burocracia.

A imparcialidade deixou de ser tábua rasa, o que, além de significar o que já se sabia, isto é, que o tratamento dado deve ter em conta o interesse público e os critérios definidos na lei, independentemente das posições pessoais dos titulares desses cargos, forçou e esforçou os órgãos administrativos a pautarem a sua acção agindo como terceiros.

Finalmente, e para terminar a nota, oferece uma ultima palavra para o Código do Procedimento Administrativo cujo aparecimento não é nem pode ser dissociado deste conceito histórico e natureza estrutural condicionante e que legitimou a proibição do poder de decisão pelo órgão administrativo em matérias que lhes digam directamente respeito.

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