segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

CURTO PAVIO III



A transumância do Portugal amordaçado para o Portugal libertado não trouxe sobriedade, legalidade e humanismo, adoptaram-se novos procedimentos coercivos injustos e injustificados, imorais e agnósticos talvez para coagirem e encobrirem, quem sabe, a maculada e apressada descolonização política, moral e material. Com ela foi-se o patriotismo constitucional e cívico, que não se fez rogado, em jeito de retaliação, levou consigo a dignidade colectiva, o espírito de conjunto, a coesão e a irmandade. Vá lá saber-se porquê (quem sabe, para homologar, como insinua a notícia[1], pecaminosos procedimentos, e consequentemente para mistificar o dolo e biombar a responsabilidade), o imaculado príncipe, “subornado” pelo vírus da maldade, decretou, sem decreto de sapiência a lei de tudo poder dizer-se, incluindo a mentira.

Do dia para a noite, dizer tornou-se numa função agnóstica e instintiva e pior do que isso num direito inexpugnável que, depressa demais, ultrapassou todos limites ao ponto de e a coberto dum valor mal assimilado (a liberdade) hoje tudo se poder dizer livremente, mesmo que tal dito se constitua numa ofensa à dignidade nacional ou ao direito individual.

Diz-se, dizer, repetir o que disse e tornar a repetir o repetido, tornou-se num direito semi-afrodisíaco que, como não podia deixar de ser, perverteu e inibiu o dever de fazer, de cumprir, de exemplificar, de honrar, etc. Dizer-se polarizou o fundamentalismo libertineiro que hoje tolhe o conceito da liberdade verdadeira.

A inversão de prioridades depressa se tornou numa rotina e como consequência inevitável a oportunidade, em vez de dar a vez à aptidão, à vocação, licenciatura ou à competência, passou a enrugá-las e como não podia deixar de ser acabou cedendo ao oportunismo, à corrupção e ao compadrio, enquanto, claro está, quem de responsabilidade sobre o assunto continua a dizer que as coisas se passam dentro da legalidade, que tudo foi (ou está a ser) feito correcta e legalmente. O cultismo do dizer esbateu a semântica do fazer, e em alguns casos do dever, por isso os triliões da U.E. encharcaram a carteira dos fazedores do oportunismo e o assédio à adjudicação fez escola para erguer uma já incontrolável oligarquia de interesses mutuamente associados que inexoravelmente atirou para a sarjeta da legalidade o interesse e o bem-estar comum; e, claro está, com o remanescente diz-se que se fez obra e se satisfez as necessidades colectivas.

Dizer e fazer tornaram-se assim elementos distintos e na esmagadora maioria dos casos conflituantes.

Talvez que no princípio de tudo se ensaie uma explicação justificada numa apressada ansiedade em dizer-se que se é livre. Mas com a passagem do tempo, a razão, a explicação, a causa, de tal forma se foi esbatendo e diluindo que hoje se perde de vista no hercúleo da ilicitude institucionalizada. Porém, e apesar desta estrutural intangibilidade, julgamos tê-la encontrado e, pior ainda, julgamos que permanece vigorosa, que se mantém hirta no seu posto de sentinela para dizer conforme as circunstâncias e agir por conveniência restrita, defraudando as expectativas do ingénuo soberano (cada vez mais confuso, resignado e como tal abstémio) e continuando a alimentar o oportunismo coriáceo do príncipe do verbo.

Ninguém me levará a mal (quiçá aplaudirá) se afirmar que hoje em dia vigora a total e completa irresponsabilidade institucional. Nenhum ingénuo acredita ser um exagero, injusto e injustificado, dizer-se que a autoridade se enrugou perante a rotina da libertinagem. Alguém ousa ser uma ousadia fazer constar que o arruaceirismo não apenas está na moda, como – mais grave do que isso - é o poder que actualmente vigora (num ápice corta-se uma ponte, uma estrada, uma via férrea, fecha-se um tribunal, etc.).

O Estado dito democrático limita-se a anotar a ocorrência.

Alguém se surpreende já com qualquer notícia de corrupção (a notícia será adivinhar quem é o próximo a ser descoberto). Quem é capaz de contestar que a intriga, a maledicência e a conspiração se sobrepõem à verdade e à ética; que a cunha substitui o mérito; que o favor derroga a aptidão e a licenciatura; que o interesse mesquinho, particular ou partidário se sobrepõe ao interesse nacional; que os representantes, quer os de carne e osso (realmente eleitos) quer os de cera (percentagem correspondente à abstenção: eleitos artificialmente), cada vez mais representam ninguém; que as oligarquias (mercantilistas, partidárias, maçónicas, etc.), não sufragadas nem legitimadas, são quem detém o poder normativo, forçam a aprovação da lei e escoram procedimentos mercantilistas. Quem ousa duvidar que, para o príncipe do dizer, o soberano só é olhado com importância e particular atenção um dia de quatro em quatro anos.

O processo de degradação do espírito da lusitaneidade começou cedo, antes ou nos instantes do pós-golpe quando, sem perder tempo, uma prole de oportunistas tomou as rédeas do poder para edificar a faculdade da bandalheira. Tal procedimento hostil à nação impôs-se, como um vírus, para subverter a conjuntura e forçar o soberano a cortar, de forma abrupta, os laços com a velha moral obrigando-o a aderir (compelidamente) aos novos modelos de lealdade, muitos deles caídos de pára-quedas, de sapiência restrita e restritiva e com poucos pingos de moralidade. Ao maquiavélico processo de demissão nacional adiram a borga e a folia para ensombrar a serenidade e impedir a racionalidade, mas como a festa não podia durar para sempre, a ressaca impôs-se para ressabiar as consequências. O soberano acorda ressacado, e, enquanto ainda contundido se afasta da paródia, os “especialistas” da nova moral entram em cena para desatar a retirar partido da fragilidade estrutural, entranhando-se no pedúnculo do poder, (conquistado ou recebido de forma coriácea), e deste modo semear o permissivo para contrair localmente um procedimento ajustado ao instinto pecaminoso e vingativo.

A consequência não se fez rogada, a longo prazo, aquilo que deveria ter sido uma serena e pacífica revolução, com motivos para a festa e a celebração, transforma-se numa veiga de coercitividade. A sementeira da maldade fez nascer com “naturalidade” as condutas e as fórmulas de pensamento e acção inconfessáveis, que envergonham a sensibilidade do verdadeiro democrata. E, desde então, (por incapacidade ou cumplicidade) ninguém mais foi capaz de travar o seu ímpeto de malvadez e de destruição.




[1] Notícia explicitada uns parágrafos à frente.

4 comentários:

fotógrafa disse...

Como sempre, assunto + que oportuno...
Major não esteja preocupado com a linkagem...rsrsrs
Claro que agora tem mais horas de obrigações, do que de ócio...
quando tiver tempo, disposição e oportunidade, tente fazer isso, e faça a linkagem de vários(dos que mais gostar) é interessante,pois será mais visitado.Faz parte do código blogueiro...fazer o link de outros blogs...
Um abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Excelente texto que subscrevo na íntegra.
Para Portugal evoluir temos que sofrer uma mudança de mentalidades que tornem as pessoas mais solidárias e sem enfoque nos bens de consumo como forma de realização pela distintividade.
São estes valores desprovidos de solidariedade que desintegram. A corrupção é normal, a cunha é normal, os partidos dominarem as instituições é normal, a anti-democracia e a falsa liberdade também já são normais.
Só com um abanão muito forte se poderá dar origem a um novo ciclo.
Um abraço

SILÊNCIO CULPADO disse...

Portugal amordaçado e prostituído, meu major.
Mas eu acredito em si para o salvar e quando for para a guerra diga, meu major.
Bato-lhe a pála meu major

fotógrafa disse...

Passando para desejar um bfs
Abraço