
(...)
Para tal, continuei a calcorrear o trilho da norma-mor e, nem sequer foi preciso uma grande caminhada para descobrir a justificação do azedume que sabota tão ímpio e impoluto valor. Sem grandes rigores semantistas, acabei por detectar a causa observando a tradução do próprio conceito de democracia que, segundo julgo saber, se trata duma organização social e política estruturada à volta duma suprema virtude (ou capacidade): facultar, sem excepção, a livre circulação de ideias e a liberdade de pensamento (sejam elas quais forem: esquerda, extrema-esquerda, centro, direita, extrema-direita, abstenção, monarquia, república, ideais democráticos, ideais indemocráticos, anarquistas, fascistas, etc.).
Ora, ao constatar, no texto constitucional, explícitas restrições, moralmente inconstitucionais, descobri o mistério que zaruca o problema. Com efeito, e se não se quiser ofender o conceito de democracia e especialmente a sua qualidade e capacidade ontológica de acolher no seu território toda e qualquer expressão filosófica, sinto ser injusto rastrear, constitucionalmente, constrangimentos sejam de que natureza for, pois tal procedimento, de jure e de facto, limita a autêntica liberdade de pensamento, a consequente liberdade de manifestação pública e o correspondente livre sufrágio. Julgo que a pertinente diferença entre a democracia e a ditadura ou outros regimes autoritários está precisamente aqui, na capacidade exclusiva que a primeira tem de conferir livre expressão de pensamento e plena concessão da sua professão qualquer que seja o ideal suscitado, seja qual for a sua natureza filosófica. Ao restringir a liberdade a um ideal que seja (qualquer que seja a desculpa) a democracia perde o seu património de exclusividade ontológica e a sua supremacia moral sobre todas as outras formas de organização política e social. Estranha e incompreensivelmente a nossa deixou-se cair nessa estúpida esparrela, coarctando o pensamento e a liberdade de expressão a alguns ideais, mesmo que sob o pretexto de indemocráticos, dando assim um tiro no pé e tornando-se co-responsável pela forma de manifestação clandestina (e por vezes violenta) que os seus seguidores assumem e adoptam ao lhes ser vedada outra forma de expressão.
E se não bastasse a desilusão, eis que encontrei o cúmulo da insensibilidade e o apogeu da contradição precisamente no seu artigo primeiro que, apadrinhando a coacção oficializante, força o soberano a ser indiscutivelmente “republicano”, sem que ele nunca o tenha recomendado; e, o que é mais grave, e quiçá indemocrático, é que a euforia constitucional não deixa nem oferece espaço de manobra para se ser coisa diferente sem coacção, medo ou preconceito. Uma constituição que diz que Portugal é uma república, não é, nem pode ser, uma constituição livre e democrática; pelo contrário é uma constituição constrangida e constrangente que, ditada pela oligarquia republicana, absolutista e fundamentalista, restringe, coage e oprime tudo o que não o seja. A república é uma forma finita de organização do Estado. Ora Portugal é muito mais do que isso é uma NAÇÃO INFINITA com história e tradição que engole a fobia republicana.
E curiosamente é uma nação tradicionalmente monárquica, portanto não-republicana.
Assim, e por culpa duma constituição repressiva, a insinuação de coisa diferente (monárquico, fascista, anarquista, abstémio, ou outro) transforma o cidadão (também soberano) num xenófobo; e, curiosamente, neste particular e insultuoso aspecto, a própria lei e a praxis tomam posições e esgrimem argumentos bem mais xenófobos do que aqueles que pretendem atingir, porquanto constrangem a xenofobia de extrema-direita enquanto incentivam a eleição da xenofobia de extrema-esquerda.
Com o Meu Pai estou a aprender a ser um indefectível democrata, por isso acho gnosticamente inconcebível e difícil aceitar a ideia, esta ideia (perversa) de democracia que, constitucionalmente, consagra constrangimentos à livre expressão e à livre circulação de ideias; porque penso que numa democracia não se é livre apenas para se poder pensar de forma rotulada, ou, dito de outra forma, não se é livre quando só se pode pensar da forma e género que o “representante” insinue que se pense, julgo que é aqui que reside a essência do mal que atinge e fustiga o dia-a-dia do soberano anónimo: primeiro, porque julgo que em Portugal (ou em qualquer outro lugar) só há liberdade e democracia quando todo e qualquer ideal, sem excepção, puder circular livremente e às claras (enquanto isso não acontecer o que quer que seja anunciado é sinónimo de abuso do conceito); segundo, porque (nem sequer é teimosia nossa) em democracia, e aqui é que está o busílis da questão, quem escolhe, decide, coloca e remove para o exercício do poder é o soberano e não o príncipe. O primeiro - O SOBERANO - é estrutural e permanente o segundo - O REPRESENTANTE - é conjuntural, volátil e efémero, por isso é que em democracia é o soberano quem detém a última e derradeira palavra e não o príncipe ou os seus íntimos desejos, e com isto encontramos a causa do mal impregnado.
Por abuso das circunstâncias, por escassez de vocação, por condicionalismos culturais, e fundamentalmente por oportunismo estrutural, a verdade é que o representante acabou por se transformar num tutor, e neste novo estatuto acha-se com autoridade moral para agredir aquele que lhe conferiu tal poder, passando a insultá-lo, alcunhando-o de “inimigo”, quando este conscientemente lhe recusa a vassalagem (abstenção). Nesta altura, vemos o príncipe histérico reagir violentamente contra o soberano que recusa pensar como ele ou em rigor recusa alimentar a causa maligna. A abstenção, ao contrário do que apregoa o “tutor” não é nenhum inimigo da democracia, pelo contrário é talvez a única forma (arma) não violenta de combater as falsas, enviesadas ou imperfeitas democracias.
E mais, depois da notada ausência duma explicação oficialmente credível acerca da revolução e da descolonização e depois das diatribes apuradas (de jure), para os restantes emolumentos, julgo sinceramente que ao cidadão “consciente”, democrata genuíno e participativo” – que não delega nem aceita delegações - a abstenção surge, mais do que nunca, como um direito, e no caso concreto como um Dever de Cidadania.
Enquanto a Maldade Estrutural não for expulsa, enquanto a correcção constitucional não for corrigida e enquanto o satus quo se mantiver, o que de todo em todo julgo ser já uma tarefa inexequível para o actual regime, não acredito que a Democracia (alegada e normativa) se regenere.
O contaminado remanescente que persiste, embora sob a alcunha de democracia, soa a falso, atrofia o sentimento nacional e especialmente atraiçoa a memória do Abril libertador, o genuíno ainda por ractificar.
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